domingo, 14 de junho de 2015

Afaste esse pré de mim, pai

Daquilo que pareço
Salta pela culatra
O ledo desengano
Sua queda apavorada
Amedrontada em melodia
Foge no refluxo sob reflexo
E minha alma a meditar
A sorrir do teu julgar
Deseja sobre teu túmulo vagar
Com as filosofias varrendo
Tudo que há de pré
E depois deitar no eterno buraco
Que na terra não se joga:
O buraco da aparência

Na pele de Deus

Estamos todos aqui reunidos para bater palmas em reverência a esse suicídio, completamente bem vindo e em hora, nada mais absoluto e necessário em tempos de vidas que duram mais que baterias duracell. O que dizer de tamanha coragem para com a nossa terra, que já não comporta mais que 1 metro quadrado por pessoa, em um exato instante de sufoco coletivo. Teu pedaço será distribuído entre bilhões e alguns poucos ficarão com o pó.
Quero que nossas ovelhas que aqui escutam façam o mesmo, o mundo está uma catástrofe com todos querendo viver e viver e viver, parece que não há nada mais interessante a se fazer que não permanecer com o coração batendo. Até os 60 é completamente compreensível, mas daí em diante qual o sentido dessa vontade? Seria ela recriminar os jovens que hoje já populam seu quadrado aos 12 anos?
Ó, pai, em tantos livros foram descritas pestes e distopias sobre o fim do mundo, e agora, em tamanha idade avançada e com progresso desnorteado, já não alcançamos mais a visão sobre essa benfeitoria disfarçada. Temo que o temor nasça de nossas mãos, pois esperar pela dizimação máxima está difícil. Nâo entendo, me perdi em algum ponto da nossa história no que diz respeito à filosofia, pois sinto que ela me é totalmente útil agora, mas não da forma como associei durante essa rotação do tempo.
Por falar nisso, quando vamos entender que o tempo é um ciclo, não é uma linha contínua no tempo-espaço, como se pudéssemos enxergar um horizonte em algum ponto entre eu e você? A realidade é que se tento abrir minha visão acabo no nada e sou puxado para uma diagonal e nunca para frente, sinto a gravidade exercer poder sobre meus pensamentos e eles caem agora, pois pesam, e conforme tu nos gira, as sinapses se confundem e fazem laços com parentes estranhos, gerando anomalias e outroras genialidades. Em qual você encaixaria essa daqui? Como te envio essa carta? Parece que o sedex só alcança saturno, dali em diante nosso petróleo já não é o bastante.
Gosto de você, mas tento te esconder. Na verdade, para os outros digo que não existe, mas você tem que existir de alguma forma, e caso não exista, então sou eu mesmo na pele de Deus. Ora, o que seria também atingir o Nirvana, mas só de raspão.
Toca um pouco da tinta de Beethoven em mim. Por que usou toda sua receita na nona? É você que sinto nela? Assim suplico.
Da arte viemos, da arte voltaremos. Deixo aqui o desejo pelo suicídio humano, para que surja a transcedência dessa coisa racional que somos. E o público a quem me dirigia aqui no início não é ninguém menos que todos os meus eus que já preencheram meu corpo.
Pelo amor te encontro.
Até logo.

domingo, 25 de janeiro de 2015

O Milho

João Sem Moral estava sentado no ônibus Nietzsche171 a caminho da psicológa, preso no tráfico diário, extremamente deprimido com a sequência exagerada de vogais em seu nome, até que uma buzina soou ao longe, o que fez bagunçar sua dialética alfabética, e o sujeito se deu conta de que não se movimentava, nem na relatividade de Einstein, por eternos 37 segundos. Olha pra todos os lados e cada celular com aquele brilho azul é um gatilho para sua raiva.

Toma um gole do whisky que não tem, procura a lua que ainda há de haver e faz poesias belas que ninguém ouvirá.

Decide, em uma confabulação binária, matar o motorista, conclusão mais que lógica para que o tráfico fluísse. Saca de uma bolsa devidamente organizada pela mãe uma .45 e caminha decidido à cabine frontal. Pensa na filha, na mulher, na amante, na outra amante, na mãe, na pipoca que deixou no microondas, mira e atira. Virou levemente a cabeça para trás, preparado caso algum dos passageiros decidice viver naquele lugar. Nada. Todos muito bem zumbificados em suas existências efêmeras. Um café cairia bem agora, pensou.

Arrastou o ex-motorista para um dos bancos, tomando muito cuidado com a coluna do mesmo, pois especialistas de Harvard já apontaram que problemas na lombar virão com tudo no próximo inverno. Certos jornais semanas depois noticiariam que o morto parecia sorrir de leve, já outros diriam que estava mais pra uma gargalhada. Sentou em seu lugar e assumiu o comando.

Nem o trono dos deuses do Olimpo se comparava com a cadeira do motorista. Parado no meio do mundo, se sentiu um Xamã na tribo Babilônia.

Um outdoor com uma moça branca esquelética ao lado de um rapaz branco com abdômen espartano, ambos com as partes culturalmente proibidas tampadas, brilha em algum lugar da avenida.

Imaginou naquele mesmo cartaz
2 neandertais
com roupas de baixo da Calvin Kleins.
A rima sempre vem a calhar nos momentos cruciais.

Nunca se sentiu tão triste e tão menos arrependido. Tentando enxergar o infinito, divisa a linha entre o céu e a terra e rumina qual o sentido da vã filosofia de Horácio agora. Oh! Se pergunta para que tantos Ohs nos textos dramáticos se nunca ouviu uma pessoa sequer falando isso num momento de angústia. Será que era ele o problema, as pessoas à sua volta ou Shakespeare tinha algum problema na garganta e isso acabou pegando? Não sabia.

João observa o corpo do morto com tédio, que treme esporadicamente, com sangue saindo pela boca, os olhos fixados e vidrados no teto.

Ônibus, meio de transporte, nem se lembrava para onde se transportava. Sabia que pegava o ônibus X, descia em Y e andava até Z. Uma vida cartesiana até o esgotamento da infância. De que serviam os abtoners da polishop ou os acendedores de cigarros inteligentes agora? Os comerciais eram o novo câncer da geração XYZ.

Suspira. Entende qual a função do cigarro e se lamenta por não ter um. Lembra que a última pergunta da filha foi "Pai, vai sair?" e de ter respondido algumas palavras soltas com voz de robô, pois estava concentrado na escrita detalhada de uma mensagem para alguma fulana e tudo tinha de estar alinhado. Sem palavras repetidas, sem palavras difíceis, nada muito formal, sem erros de português, mas também nem tudo certo, erra propositadamente 2 palavras escolhidas a dedo e envia. A filha já tinha sumido.

De volta à realidade, mais buzinas tocam e não era o carrinho de pipoca que tinha chegado na sua rua oferecendo qualidade. Eram pessoas odiosas, descarregando o acúmulo de informações na buzina. Para ele, era sinfonia. Maestro daqueles que não conseguiam suportar a felicidade alheia, pessoas que passariam a vida sem sem nunca ter sentido a experiência de tirar uma vida.

Estava em êxtase até uma mosca pousar em seu ombro e tirar seu equilíbrio mental. João saca novamente a .45 e atira sem pensar no inseto, que nesse momento parecia gigante, como se o estivesse vendo através de uma lupa em uma velocidade super lenta. Discovery Channel da vida real. Consegue visualizar o trajeto do tiro: o tranco na mão, a explosão na ponta do cano, a munição cuspida que segue em linha reta, o olhar da mosca que triangula com o olhar daquele que atira e o salto insano da mesma para longe. A bala acerta de raspão sua asa, ela não sustenta o voo e cai rodopiando, ainda viva. Ela rasteja, sem fôlego, querendo e precisando escapar, enquanto João se abismava com seu ato.

Era o nascimento da tragédia. Antes que tivesse tempo de sua consciência vir à tona, dá o tiro de misericórdia na mosca, que tem seu corpo todo contemplado pelo projétil. Ele começa a chorar, mas antes que a primeira lágrima caísse, o chão vibra e o motor embaixo da mosca entra em combustão. Dá seu primeiro sorriso do dia, o último da vida, se dá conta que hoje não tinha se olhado no espelho e lembrou da pipoca no microondas.